Introdução
A rápida propagação do novo coronavírus, desde os primeiros contágios identificados na China, causou profundo impacto na economia global. A velocidade de sua dispersão e o consequente colapso dos sistemas hospitalares impuseram o isolamento social como a melhor alternativa para minimizar os efeitos da Covid-19. Mesmo aqueles países que relutaram em determinar o recolhimento compulsório da população às suas residências tiveram que abandonar sua posição inicial e adotar tal procedimento. A paralização das atividades sociais, como bem pode ser imaginado, trouxe reflexos profundos na economia e certamente levará inúmeros países à recessão.
Nesse contexto, não é difícil supor que o impacto das políticas de isolamento social sobre as relações contratuais será significativo. Contratos de fornecimento precisarão ser renegociados, na medida em que o revendedor não tem mais a quem repassar seus produtos. A locação não comercial certamente exigirá maior flexibilidade dos locadores, porquanto, fechadas as lojas, certamente o faturamento do locatário será bastante reduzido. As creches não mais receberão crianças, as academias não terão quem se exercite e as salas de cinemas e teatros irão emudecer. Em síntese, a abruta desestruturação da atividade econômica atingirá com máxima potência o direito contratual, levando à revisão, ou mesmo à resolução, inúmeras relações negociais.
É certo que na maior parte das vezes as próprias partes irão se compor. Normalmente, elas têm o interesse de manter vigente a sua relação contratual, ainda que tenham que fazer concessões que, originariamente, não estavam previstas. Todavia, haverá situações nas quais as partes não chegarão a um denominador comum. Será necessário, então, recorrer ao Poder Judiciário,
ou às câmaras arbitrais, para recuperar-se o sinalagma contratual, i.e., para se reequilibrar a relação negocial.
O objetivo do presente artigo é o de trazer os fundamentos jurídicos que permitem a alteração das condições contratuais. O que se tem observado na jurisprudência, ao menos até o presente momento, é que as ações em que se buscava a revisão ou resolução dos contratos se assentava, fundamentalmente, sobre cláusulas gerais, tais como a função social e a boa-fé objetiva. Ocorre, no entanto, que a intervenção judicial pode produzir efeitos nefastos sobre a dinâmica negocial. Já existem estudos que apontam as consequências negativas de uma revisão generalizada dos contratos. Esse procedimento, pautado mais por uma postura paternalista ou por um sentimento de comiseração do magistrado do que pelas regras legais que regem a revisão ou resolução dos contratos, traz externalidades que afetam não apenas os próprios contratantes, mas também vários segmentos da sociedade
É necessário, portanto, reduzir-se a esfera de atuação do magistrado, vinculando-o aos contornos legais dos institutos jurídicos que permitem a revisão ou resolução contratual. É preciso minimizar a insegurança jurídica que decorre da alteração exógena dos contratos. E isso se faz, como dito, observando-se tecnicamente os dispositivos legais aplicáveis a tais circunstâncias.
Assim, o que se pretende com este artigo, é exatamente explicitar os fundamentos legais que permitem a revisão ou a resolução dos contratos. Pretende-se trazer segurança jurídica em meio à insegurança trazida pela pandemia.
Primeiro passo: a identificação da relação contratual
Primeiramente, faz-se fundamental definir qual a natureza da relação jurídica que será analisada. Isso porque, existem regras jurídicas que irão se aplicar especificamente a certas relações negociais. É o que ocorre, por exemplo, com os contratos de consumo. Assim, estabelecer precisamente quais dispositivos legais são aplicáveis àquela relação que se pretende discutir é essencial, até mesmo para que não sejam geradas falsas expectativas para as partes.
Para proceder-se a essa definição, é possível visualizarmos três tipos de relações negociais: a) a que se estabelece entre dois profissionais; b) a que se estabelece entre dois não profissionais e c) a estabelecida entre um profissional e um não profissional. A primeira é tipicamente uma relação empresarial. As partes adquirem produto ou serviço relacionado a sua atividade econômica. Nesses casos não há, via de regra, uma assimetria de informações entre as partes – muito embora possa haver, sim, a vulnerabilidade, especialmente econômica, de um dos contratantes. A segunda relação é tipicamente uma relação civil; as partes contratam para a satisfação de suas necessidades pessoais e não se lhes exige maior conhecimento técnico acerca do produto ou serviço adquirido. Há, também nesta relação, uma presunção de paridade entre os contratantes. Finalmente, a
terceira relação, que se estabelece entre um profissional e um não profissional, é tipicamente uma relação de consumo. O fornecedor, para utilizarmos o termo adotado pelo Código de Defesa do Consumidor, tem o conhecimento técnico que falta ao consumidor; justamente por esse motivo, a legislação vem em socorro a este último, com o intuito de atenuar a sua vulnerabilidade.
Podemos, então, concluir que tanto as relações jurídicas travadas entre profissionais quanto aquelas estabelecidas entre não profissionais serão regidas pelo Código Civil. Já os contratos firmados entre profissionais e não profissionais sujeitam-se, primeiramente, ao Código de Defesa do Consumidor e, apenas supletivamente, ao Código Civil.
É importante frisar, apenas, que o Superior Tribunal de Justiça já se posicionou no sentido de que as relações entre dois profissionais podem caracterizar uma relação de consumo. Adotando a denominada Teoria Finalista Aprofundada, perfilhou
aquele Tribunal o entendimento de que, caracterizada a vulnerabilidade no caso concreto, pode-se autorizar que aquele contratante que se apresenta em situação de vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica – mesmo tendo agido como um
profissional na relação contratual – se valha das disposições protetivas do Código de Defesa do Consumidor:
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE COBRANÇA. 1.TEORIA FINALISTA. MITIGAÇÃO (CDC, ART. 29). EQUIPARAÇÃO A CONSUMIDOR. PRÁTICA ABUSIVA OU SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE. NÃO
RECONHECIMENTO PELA INSTÂNCIA ORDINÁRIA. REVISÃO. INVIABILIDADE. SÚMULA 7 DO STJ. [...]
Esta Corte firmou posicionamento no sentido de que a teoria finalista deve ser mitigada nos casos em que a pessoa física ou jurídica, embora não se enquadre nas categorias de fornecedor ou destinatário final do produto, apresenta-se em estado de vulnerabilidade ou hipossuficiência técnica, autorizando a aplicação das normas previstas no CDC. Precedentes. (AgInt no AREsp 1285559 (tel:1285559)/MS, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 28/08/2018, DJe 06/09/2018).
Desse modo, é possível que, na relação entre dois profissionais, seja utilizado o Código de Defesa do Consumidor. Para tanto, será necessário que a parte demonstre inequivocamente a sua vulnerabilidade. Precisará demonstrar que os contornos fáticos da relação material restringiram de fato o seu poder negocial, colocando-a em posição de flagrante inferioridade perante o outro contratante. Tal entendimento, inclusive, é reforçado pela própria Lei de Liberdade Econômica, que inseriu o art. 421-A no Código Civil. Esse dispositivo estabelece que se presumem paritários e simétricos os contratos civis ou empresariais até que se evidencie a presença de “elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção”.
A resolução decorrente da impossibilidade de cumprimento da obrigação
Esta é, provavelmente, a hipótese menos polêmica da temática proposta. De fato, o Código Civil estabelece que havendo a impossibilidade de cumprimento da obrigação sem culpa do devedor, resolve-se a obrigação, sem perdas e danos.
Tem-se, aqui, a aplicação de regra tradicional do direito das obrigações. A ausência de culpa do devedor o exime do dever de indenizar a outra parte pelo descumprimento da obrigação. Considere-se, assim, a hipótese de um estabelecimento que fora contratado para a realização da festa de uma empresa. Com a suspensão do alvará de funcionamento determinada pelo município como uma das medidas de combate ao Covid-19, esse estabelecimento está impedido de receber os convidados. A solução jurídica adequada, nesse caso, é a resolução do contrato, sem perdas e danos e com retorno ao statu quo ante,conforme dispõe o art. 248 do Código Civil.
É ainda o Código Civil que estabelece, em seu art. 393, que o devedor não responde pelos prejuízos decorrentes do caso fortuito ou força maior, hipótese na qual, em tese, inclui-se a pandemia. Desse modo, o inadimplemento absoluto da obrigação, ou a mora em seu cumprimento, não ensejam o pagamento de perdas e danos nem a aplicação das penalidades contratualmente previstas.
Deve-se registrar que se o devedor assumir o risco relativo ao caso fortuito ou força maior, não poderá eximir-se dos prejuízos advindos de tais fatos jurídicos, conforme determina o art. 393 do Código Civil. Tal cláusula, obviamente, poderá ser submetida ao crivo judicial, caso seja considerada, em face das circunstâncias do negócio, leonina. Desse modo, caso se trate de uma relação de consumo, a análise da legalidade da cláusula que transfere ao devedor os riscos pelo caso fortuito ou força maior se pautará pelos critérios estipulados no art. 51 do Código de Defesa do Consumidor.
O sistema protetivo que comina a pena de nulidade às cláusulas abusivas permite que, dentre outras, se questione a cláusula que transferiu para o consumidor a responsabilidade pelo caso fortuito ou força maior com base no inciso I (cláusula contratual que implique renúncia ou disposição de direitos); IV (cláusula contratual que estabelece obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloque o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade) e XV (cláusula contratual que esteja em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor), sendo que o parágrafo primeiro do art. 51, em seu inciso III, “presume exagerada a vantagem que se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso”.
E, mesmo que não se trate de uma relação jurídica sujeita ao CDC, pode-se recorrer ao art. 422 do Código Civil, que exige dos contratantes a observância aos princípios da probidade e da boa-fé. Nesse caso, porém, as modificações trazidas pela Lei de Liberdade Econômica restringem a possibilidade de revisão contratual. Com efeito, o parágrafo único do art. 421 inseriu em nosso ordenamento o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual, e o art. 421-A determina que a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada (inciso III), respeitando-se e observando-se a alocação
de riscos definida pelas partes (inciso II).
Quer se trate de uma relação civil ou comercial, quer se trate de uma relação de consumo, é imprescindível analisar-se as circunstâncias do negócio, o comportamento das partes, os usos, costumes e práticas do mercado e, essencialmente, procurar encontrar a racionalidade econômica que orientou as partes no momento da celebração do negócio jurídico. Não é razoável falar-se, nos casos em que uma das partes assume os riscos pelo caso fortuito ou força maior, em uma abusividade em abstrato. A simples inserção da cláusula não implica a sua abusividade; ao revés, é necessário demonstrar-se a sua incompatibilidade com a boa-fé e com as circunstâncias do caso concreto.
O art. 113 do Código Civil, com as alterações introduzidas pela Lei de Liberdade Econômica traz parâmetros interpretativos que auxiliam o magistrado na árdua tarefa de reconstruir a vontade das partes por ocasião da contratação:
Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.
1º A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que:
I - for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio;
II - corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio;
III - corresponder à boa-fé;
IV - for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável; e
V - corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração.
Assim, em regra, havendo a impossibilidade de cumprimento da obrigação, ou caracterizado o inadimplemento absoluto ou a mora, autoriza-se a resolução do contrato, sem culpa do devedor e, por conseguinte, sem o pagamento de cláusula penal, juros moratórios ou qualquer outro encargo vinculado ao descumprimento obrigacional. Excepciona-se esse entendimento naqueles casos em que o devedor expressamente assumiu os riscos relativos ao caso fortuito ou à força maior, hipóteses na quais responderá pelas perdas e danos. É possível, no entanto, eventualmente, reconhecer-se a nulidade dessa cláusula.
A resolução ou revisão do contrato por onerosidade excessiva
Outro efeito que a pandemia pode causar sobre os contratos é a onerosidade excessiva para uma das partes. Noticiou-se, por exemplo, o aumento do valor de insumos como álcool em gel e máscaras. Podemos, então, supor uma relação negocial em que o equilíbrio entre a prestação e a respectiva contraprestação seja rompido, havendo um ônus excessivo para um dos contratantes. Nesse caso, tanto o Código Civil quanto o Código de Defesa do Consumidor oferecem alternativas para as partes, sendo que o procedimento trazido pelo CDC exige requisitos menos rígidos que aqueles constantes do diploma civil.
O CDC, em seu art. 6º, inciso V, elenca como direito básico do consumidor a revisão das cláusulas contratuais “em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas”. Basta, portanto, demonstrar que o contrato se tornou mais oneroso em razão da crise causada pela pandemia. Aqui, diferentemente do que se exige no Código Civil, não é necessário que a onerosidade reverta em proveito da outra parte ou que o fato seja extraordinário e imprevisível. Esse, inclusive, foi o entendimento do STJ ao julgar a revisão dos contratos de leasing corrigidos pela variação cambial, à época da maxidesvalorização cambial de janeiro de 1999.
Ao discutir-se os requisitos para a revisão dos contratos de consumo, prevaleceu o entendimento de que “o preceito insculpido no inciso V do artigo 6º do CDC dispensa a prova do caráter imprevisível do fato superveniente, bastando a demonstração objetiva da excessiva onerosidade advinda para o consumidor”. Registrou-se que a desvalorização da moeda nacional frente à moeda estrangeira que serviu de parâmetro ao reajuste contratual, por ocasião da crise cambial de janeiro de 1999, apresentou grau expressivo de oscilação, a ponto de caracterizar a onerosidade excessiva que impede o devedor de solver as obrigações pactuadas”. (STJ – 3 T, REsp: 376877 - RS 2001/0168065-2 (tel:2001/0168065-
2), relatado pela Ministra Nancy Andrighi, julgado em 06/05/2002 e publicado no DJ 24.06.2002, p. 299)
Ao final, decidiu-se que a onerosidade excessiva justificaria, por si só, a revisão do contrato, com a repartição equânime dos ônus entre consumidores e fornecedores:
CIVIL. ARRENDAMENTO MERCANTIL. CONTRATO COM CLÁUSULA DE REAJUSTE PELA VARIAÇÃO CAMBIAL. VALIDADE. ELEVAÇÃO ACENTUADA DA COTAÇÃO DA MOEDA NORTE-AMERICANA. FATO NOVO. ONEROSIDADE EXCESSIVA AO
CONSUMIDOR. REPARTIÇÃO DOS ÔNUS. LEI N. 8.880/94, ART. 6º. CDC, ART. 6º, V. I. [...]. II. Admissível, contudo, a incidência da Lei n. 8.078/90, nos termos do art. 6º, V, quando verificada, em razão de fato superveniente ao pacto celebrado,
consubstanciado, no caso, por aumento repentino e substancialmente elevado do dólar, situação de onerosidade excessiva para o consumidor que tomou o financiamento. III. Índice de reajuste repartido, a partir de 19.01.99 inclusive, equitativamente, pela metade, entre as partes contratantes, mantida a higidez legal da cláusula, decotado, tão somente, o excesso que tornava insuportável ao devedor o adimplemento da obrigação, evitando-se, de outro lado, a total transferência dos ônus ao credor, igualmente prejudicado pelo fato econômico ocorrido e também alheio à sua vontade. IV. Recurso especial conhecido e
parcialmente provido. (STJ - REsp: 472594 SP 2002/0132082-0 (tel:2002/0132082-0), Relator: Ministro Carlos Alberto Menezes
Direito, Data de Julgamento: 12/02/2003, S2 - Segunda Seção, Data de Publicação: DJ 04.08.2003 p. 217, RDDP vol. 9 p. 127)
Já no Código Civil, o art. 478 é mais restritivo para autorizar a revisão dos contratos. A força obrigatória ainda é o princípio retor do direito negocial e, por isso, a intervenção judicial na economia contratual tem natureza excepcional. Nesse sentido, inclusive, dispõem o parágrafo único do art. 421 e o art. 421-A, ambos do Código Civil.
Ao incorporar a vetusta cláusula rebus sic stantibus em nosso direito positivo, o legislador o fez criando uma nova modalidade de resolução contratual, a resolução por onerosidade excessiva, prevista nos arts. 478 e 479 do Código Civil. Exige-se que um fato superveniente, imprevisível e extraordinário – como foi a pandemia -, rompa o sinalagma contratual, tornando mais onerosa a prestação de um contratante e, simultaneamente, aumentando a vantagem para o outro.
Quando se fala em onerosidade excessiva, é importante deixar claro que a lei se refere ao conteúdo da prestação e não a uma eventual dificuldade em seu cumprimento. O que se pretende, aqui, é manter o equilíbrio original da relação contratual. Se a balança pender para um lado, isso terá um reflexo imediato no outro lado da balança. A solução apresentada pelo Código Civil, nesse caso, é a resolução contratual - a revisão, em princípio, seria uma faculdade do outro contratante, que poderia querer evitar o rompimento do contrato e, para tanto, ofereceria novas condições contratuais (art. 479 do Código Civil).
A doutrina civilista, em sua quase totalidade, tem entendido que muito embora o Código Civil expressamente elenque a onerosidade excessiva como causa de resolução contratual, isso não impediria o magistrado de proceder à revisão do
contrato. Afinal, se ele pode determinar o fim da própria relação contratual, ele poderia também alterar os seus termos. Aplicase, aqui, a máxima latina a maiori, ad minus, i.e., quem pode o mais, pode o menos. Sugere-se, inclusive, o art. 317 do Código Civil para embasar o pedido de revisão:
Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.
A despeito do art. 317 ter sido concebido para permitir que o magistrado corrigisse o valor da obrigação corroído pela inflação, em uma época em que a jurisprudência ainda discutia a possibilidade de se atualizar monetariamente o valor da obrigação pecuniária, ele tem sido utilizado como exemplificativo da possibilidade de modificação judicial das prestações contratuais, a fim de se reequilibrar o negócio jurídico.
Para exemplificar essa situação, vamos imaginar a relação contratual existente entre um hospital e a revendedora de materiais hospitalares. Suponha que, em virtude do aumento da demanda, as fabricantes tenham aumentado o valor dos produtos. Essa revendedora irá, então, repor o seu estoque adquirindo produtos mais caros do que o habitual e poderá ser forçada, pelo contrato de fornecimento com ela mantido com um determinado hospital, a manter preços mais baixos do que aqueles que ela agora irá pagar para a fabricante. A sua relação com o hospital, nesse caso, se torna desequilibrada? A resposta é afirmativa,
porquanto ela irá vender o produto por um preço inferior ao preço de aquisição daquele mesmo produto, e essa diferença no preço reverterá em proveito do hospital – que pagará menos do que aqueles bens valem no momento da execução do contrato.
Na situação apresentada, temos o fato superveniente, extraordinário e imprevisível, que tornou mais onerosa a prestação do revendedor, em proveito do hospital, que terá uma vantagem com tal situação. Autoriza-se, assim, nos termos do art. 478 do Código Civil, a resolução do contrato (ou a sua revisão, de acordo com o entendimento doutrinário majoritário).
É importante registrar que nas relações contratuais bilaterais, onerosas e comutativas, há obrigações para os dois contratantes e há um relativo equilíbrio entre o valor da prestação e da contraprestação. Portanto, rompido o equilíbrio, a parte que sofreu o ônus excessivo poderá pleitear a resolução – ou a revisão – do contrato, qualquer que seja a posição que ocupe no polo contratual. Isso significa que tanto o contratante quanto o contratado se beneficiam da alteração das condições contratuais.
Nesse aspecto, devemos ressalvar as relações de consumo. O CDC estabelece que a revisão do contrato em razão de fato superveniente que o torne excessivamente oneroso é um direito do consumidor, não o estendendo ao fornecedor. Pode-se até
argumentar que a ordem jurídica não tolera o enriquecimento sem causa e que o que se pretende, em última instância, é o reequilíbrio contratual. Todavia, não se pode olvidar que o CDC confere tal direito exclusivamente ao consumidor. A sua não extensão ao fornecedor caracteriza o silêncio eloquente e coaduna com a lógica protecionista do direito do consumidor, que transfere ao fornecedor os riscos da relação jurídica.
Em breve síntese, concluímos que nas relações sujeitas ao CDC é possível a revisão do contrato em razão de fato superveniente que torne mais onerosa a obrigação do consumidor. Dispensa-se que tal fato seja imprevisível e extraordinário, do mesmo modo que não se exige que o fornecedor tenha alguma vantagem econômica correspondente ao maior ônus que passa a ser suportado pelo outro contratante. Nesses casos, a revisão é um direito conferido exclusivamente ao consumidor.
Nas demais relações, não sujeitas ao CDC, qualquer dos contraentes (credor ou devedor) poderá pleitear a resolução do contrato, desde que atendidos os requisitos do art. 479 do CC, especialmente a maior onerosidade para uma das partes e a correspectiva vantagem para a outra (a excepcionalidade da pandemia é inquestionável); encontra-se na doutrina o entendimento de que a revisão desses contratos também seria admissível, questão que agora certamente será objeto de pronunciamento judicial.
A modificação do contrato em razão da dificuldade de seu cumprimento
Como já mencionado, tanto o Código de Defesa do Consumidor quanto o Código Civil condicionam a resolução ou a revisão do contrato ao rompimento do sinalagma contratual, ou seja, à ruptura do equilíbrio entre as prestações.
Existem hipóteses, porém, nas quais a alteração das condições contratuais seria conveniente, muito embora não se subsumam aos preceitos legais. Seria o caso, por exemplo, de um produtor rural que fornece frutas e vegetais para uma rede de
restaurantes. Com a determinação das autoridades municipais de se fecharem tais estabelecimentos, que poderiam apenas fornecer refeições no sistema delivery, haverá a necessidade de se adquirir uma quantidade menor de produtos do que aquela originalmente contratada. Não haverá, porém, uma onerosidade excessiva em uma das prestações – e nem a correspectiva vantagem. De fato, o conteúdo das prestações se manterá similar ao que fora inicialmente pactuado, independentemente da pandemia. A rede de restaurantes, no entanto, não mais terá necessidade de tantos produtos; o produtor rural, por outro lado,
pode ter aumentado os seus custos exatamente para atender os compromissos que havia assumido.
Na situação apresentada, não há ônus excessivo que permita o recurso ao art. 6º., inciso V, do CDC, nem ao art. 478 do Código Civil. Há, contudo, uma alteração na base objetiva do negócio. As condições presentes no momento da contratação
não se encontram presentes no momento de sua execução. As circunstâncias originais, que não apenas induziram as partes à negociação como, também, influenciaram as condições negociais, foram desfeitas pelos efeitos socioeconômicos provocados pela pandemia. Isso pode acarretar, inquestionavelmente, uma dificuldade no cumprimento da avença ou, mesmo, a
impossibilidade subjetiva de adimplemento. Para esses casos, não há, no direito positivo brasileiro, uma solução. Isso não significa, porém, que não existam alternativas oferecidas pela ordem jurídica.
Uma dessas alternativas é a teoria da base objetiva do negócio, que autoriza a revisão das condições contratuais sempre que houver a possibilidade de frustrar-se o contrato em razão da alteração das circunstâncias objetivas em que ocorreu a
celebração do contrato. Nesses casos, entende-se que há possibilidade de o Poder Judiciário interferir na economia contratual, readequando-o para que ele se torne exequível. O objetivo, aqui, é o de conservar-se a relação contratual, mantendo-a
exequível.
No direito português, o Código Civil, em seu art. 437, permite o pedido de resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias:
SUBSECÇÃO VII
Resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias
ARTIGO 437º (Condições de admissibilidade)
Se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das
obrigações por ela assumidas afete gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato. Requerida a resolução, a parte contrária pode opor-se ao pedido, declarando aceitar a modificação do contrato nos termos do número anterior
Não há motivos para que o mesmo raciocínio não possa ser aplicado ao direito brasileiro. Os tribunais, mais de uma vez, já recorreram à doutrina como fonte do direito, aplicando, e.g., a teoria da aparência ou a teoria da desconsideração (neste caso, mesmo antes de sua positivação pelo CDC). Se a relação contratual é pautada, sobretudo, pelo equilíbrio contratual e se rege pelo princípio da conservação dos contratos, viabiliza-se a interferência judicial para manter vigente aquele vínculo, reduzindo, na medida do possível, os custos excessivos em que incorreram em razão de uma alteração anormal das circunstâncias. E, para delimitar a ação judicial nesses casos, as disposições apresentadas pelo Código Civil Português apresentam-se bastante adequadas, na medida em que condiciona a modificação segundo juízos de equidade a uma afronta direta à boa-fé, além de se exigir que a alteração das circunstâncias não se insira na própria álea contratual.
Conclusões
Como mencionado anteriormente, o objetivo deste breve ensaio foi o de apresentar as regras que o direito brasileiro apresenta para permitir a modificação ou a resolução dos vínculos contratuais em decorrência da pandemia. Se, de um lado, o pacta sunt servanda é ainda a regra de ouro do direito contratual, responsável pela preservação da estabilidade da ordem social, não se nega, por outro lado, que em situações excepcionais há a necessidade de se permitir a revisão ou a resolução dos contratos. A intervenção judicial na economia contratual traz, em regra, externalidades que, no médio prazo, mostram-se prejudiciais para a própria sociedade. Desse modo, é necessário definir-se tecnicamente quais as situações que permitem a intervenção nos contratos e em quais termos essa intervenção deve se dar sob pena de se maximizar a insegurança jurídica.
Rodolpho Sampaio Jr - Doutor em Direito Civil. Professor Adjunto na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e Na Faculdade de Direito Milton Campos. Associado à Academia Brasileira de Direito Civil – ABDC e ao Instituto dos Advogados de Minas Gerais – IAMG. Procurador do Estado de Minas Gerais e Advogado.